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Sustentabilidade:
A lógica humana e a logística do Reino
Por
Hermes C. Fernandes
_____________
...Havia sido um dia difícil. Jesus estava
exaurido. Não adiantou tentar fugir da multidão ávida
por milagres. Quando desembarcou do outro lado do mar de Tiberíades,
surpreendeu-se por ver que o povo o seguira, rodeando o mar.
...Já entardecia, e Jesus não queria despedir aquele povo sem
que antes fosse alimentado. Seu receio era de que muitos desfalecessem pelo
caminho, pois estavam com ele desde muito cedo.
...Virando-se para Felipe, perguntou-lhe:
...- Como vamos fazer pra alimentar tanta gente?
Onde compraremos tantos pães?
...Apesar de saber exatamente o que faria, Jesus quis testar Seu discípulo,
atribuindo-lhe a posição de diretor de logística.
...Imagino que Felipe recorreu à tesouraria para saber quanto havia disponível
em caixa. Judas deve ter-lhe informado que só restaram duzentos denários.
...Antes de responder à pergunta do mestre, Felipe calculou que aquela
quantia não seria suficiente nem para garantir um mísero pedaço
de pão para cada pessoa. Afinal, eram cerca de cinco mil homens, fora
mulheres e crianças. Estima-se que havia ali ao menos quinze mil pessoas.
...Ademais, ainda que houvesse dinheiro suficiente no caixa, que padaria seria
capaz de atender a tal demanda em tão pouco tempo?
Talvez Felipe tenha considerado argumentar com Jesus mais ou menos nesses
termos:
...- Senhor, alimentar este povo não é responsabilidade nossa.
O Senhor já os curou, os ensinou; Sua missão está cumprida. É melhor
despedi-los agora.
...Vemo-nos diante de uma importante questão: até onde vai a nossa
responsabilidade como igreja para com o mundo? Alguns dirão que nossa
missão se limita a ‘povoar o céu’, salvar almas,
ensinar a sã doutrina, etc. Enquanto isso, o mundo segue faminto por
justiça.
...A razão pela qual evitamos qualquer
envolvimento em questões
de ordem social é sabermos o quão oneroso é. Alimentar
os famintos, vestir os desnudos, abrigar os sem-teto, denunciar estruturas
injustas, tudo isso tem um preço. Quem se dispõe a arcar com
ele? A evasiva é limitar a atuação da igreja à salvação
da alma, isto é, garantir às pessoas uma eternidade feliz.
...Porém, a proposta do Evangelho abarca o homem por inteiro. Tudo o
que diz respeito ao ser humano, suas demandas, seus anseios, devem estar
dentro do escopo de nossa missão.
...Fica bem mais em conta a manutenção de nossos templos e programas.
Gastamos vastas somas para garantir o conforto dos crentes. Construímos
nossas suntuosas catedrais. Compramos equipamentos cada vez mais sofisticados.
Mas não nos importamos com o mundo à nossa volta.
...A cada dia, novas cracolândias surgem debaixo do nosso nariz. Mas isso
não é da nossa conta...
...Mães solteiras são abandonadas com os seus filhos... Elas que
arquem com o ônus de sua imoralidade!
...Quanto será necessário para que mudemos este quadro? Quanto
temos em caixa atualmente? Quanto das ofertas e dos dízimos que recolhemos
será usado para atenuar a dor dos nossos semelhantes?
...Enquanto Felipe fazia seus cálculos, outro discípulo, André,
se mete no meio da multidão à procura de alguém que
fosse a resposta. André seria o no mundo empresarial chamamos de gerente
de recursos humanos.
...No meio de tanta gente faminta, eis que surge
um menino trazendo consigo uma lancheira. Sua mãe, ao saber que passaria o dia fora, preparou-lhe
um lanchinho: cinco pãezinhos e dois peixinhos. Assim mesmo, tudo
no diminutivo.
...André imagina que aquele garoto poderia, no mínimo, disponibilizar
parte do seu lanche para saciar o mestre. Afinal, quem estaria mais faminto
do que Ele depois de atender a tanta gente?
...O reino de Deus não precisa de dinheiro, mas de gente. Não
importa a faixa etária, a etnia, o grau de instrução,
ou a situação econômica. A única coisa que, de
fato, importa é que haja disposição e disponibilidade.
Não adiante estar disposto, mas não estar igualmente disponível,
nem vice-versa.
...Aquele menino era a solução do problema.
...Ao receber de suas mãos o lanchinho que sua mãe lhe preparara,
Jesus tomou-o, deu graças, repartiu-o e deu aos Seus discípulos.
Quando estes já iam levando à boca o seu pedaço, Jesus
os interrompe e diz: Agora é a vez de vocês repartirem com os
demais.
Quem disse que Deus precisa de muito para fazer grandes coisas? Pelo contrário,
Sua especialidade é fazer coisas extraordinárias a partir daquilo
que é considerado ínfimo, insignificante.
...O que não se pode é multiplicar zero. Deus faz milagres, não
mágica. Zero vez mil continua sendo zero. Zero multiplicado por um
trilhão ainda é zero. A única vez que Deus fez alguma
coisa a partir do nada foi na criação dos céus e da
terra. A partir daí, tudo o que Deus fez teve como ponto de partida
algo que já existia.
...A lógica divina contraria a humana. Para que haja multiplicação,
tem que haver divisão. Sem partilha, tudo continua como é.
...Não subestime o que Deus lhe tem confiado. Ele sabe exatamente o que
fazer para que isso seja potencializado. Porém, para isso, é mister
que confiemos às Suas mãos o que temos recebido. Não
apenas nossos recursos materiais, mas também intelectuais, emocionais,
espirituais, o que inclui nossas aptidões, dons, talentos, know how,
experiências. E como confiamos tais recursos a Ele? Quando os disponibilizamos
para ser usado em favor do bem comum. Nada do que Deus nos deu foi visando
exclusivamente a nossa satisfação pessoal. Nossa vocação
primordial é a de ser bênção. E como é gratificante
saber que outros estão sendo beneficiados através do que Deus
nos conferiu.
...Depois de alimentar à multidão, ainda sobraram doze cestos
lotados de pães e peixes. Não me pergunte como. Se pudesse
ser explicado, já não seria milagre.
...Chama-me atenção a ordem dada por Jesus para que os discípulos
não permitissem qualquer desperdício. Mesmo sabendo que Seu
poder é uma fonte inesgotável, não somos autorizados
a sermos pródigos com os recursos que nos têm sido disponibilizados.
Um estilo de vida consumista é incompatível com uma consciência
transformada pelo Evangelho.
...Compartilhar não é o mesmo que desperdiçar, mas aproveitar
ao máximo o que recebemos. O prazer proporcionado ao outro multiplica
o nosso próprio prazer. Desperdiçar é jogar fora, ou
gastar irresponsavelmente. Como cristãos, deveríamos estar
na vanguarda das campanhas de reciclagem. O mundo não suporta mais
tanto desperdício. Tanto pela injustiça que produz (uns com
tantos, outros com tão pouco), como pelo uso de fontes nem sempre
renováveis e o acúmulo de lixo que compromete a sustentabilidade.
* Reflexão baseada em João 6.
Site: www.hermesfernandes.com
sábado, setembro 06, 2014